Pensamento crítico sobre Porto Alegre, o Brasil e o Mundo.

A Copa 2014 e o banheiro do Papa

Há uns dias atrás Cristóvão Feil veiculou em seu “Diário Gauche” um belo e agudo texto de Fernando Pessoa sobre o provincianismo. Afirmava ele, nos idos de 1928, que o provincianismo “é um facto triste”, que “enfermava os portugueses e, também, muitos outros países. E apontava os três sintomas característicos do provincianismo: “o entusiasmo e admiração pelas grandes cidades, o entusiasmo e admiração pela modernidade e pelo progresso e, no plano mental, a incapacidade de ironia.” Oitenta anos depois, constatamos nesta Província de São Pedro que as observações do poeta maior mantém absoluta atualidade: não perece o que é universal. Prosseguia Pessoa: “…o amor ao progresso e ao moderno é outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam a o progresso, a moda; por isso não lhes atribuem importância maior. “ Já o provinciano, que sonha integrar o avanço – mas que não toma parte do desenvolvimento superior dele – “restringe-se a uma subordinação inconsciente e feliz”. Vai “à reboque”, é um embasbacado. Olha imagens de arranha-céus de Nova York ou das imensas torres de Dubai – uma superada e exagerada exaltação dos símbolos arquitetônicos do capitalismo – e pensa, ou pior diz: “ Porto Alegre poderia (ou deveria) ser assim.”

Nos últimos meses alguns temas ocuparam largos espaços na mídia da nossa “muy leal e valerosa Porto Alegre”. Nos referimos à tentativa de aprovar um grande empreendimento imobiliário no Pontal do Estaleiro, aos dois projetos “casados” num mesmo pacote – o de ampliação e modernização do complexo Beira Rio e o de construção da Arena do Grêmio -, e, neste mês de setembro o envio à Câmara Municipal do mega projeto do Cais do Porto da Mauá. Todos eles têm em comum um invariável argumento de defesa: “somos o futuro, o moderno, o avanço”.

Espécie de escudo que tenta ocultar os vorazes interesses imobiliários dos “empreendedores. E quem é contra representa o atraso. Já os dois projetos do Grêmio e do Inter e o do Cais repetem à exaustão um outro argumento em sua defesa, igualmente provinciano: sua fundamental importância para viabilizar a Copa de 2014. O recado simples, direto, é: devemos aceitar a violação do interesse público, dificultar a vida do porto-alegrense, atentar contra o patrimônio histórico e cultural da cidade, poluir o meio ambiente porque são sacrifícios necessários para assegurar e viabilizar o “grande e mágico evento”. Que vai acontecer daqui a cinco anos e que é efêmero, não dura mais do que alguns meses.

Vale lembrar o tema de um excelente filme uruguaio, “O banheiro do papa”, exibido há poucos meses atrás em Porto Alegre. Narra um bizarro episódio que tem tudo a ver com o que estamos tratando. Numa pequena e muito pobre cidade do interior do nosso vizinho país chega uma auspiciosa notícia. Na sua visita ao país, o papa honrará o vilarejo com a sua santa passagem. O destaque dado ao fato pelo notíciário da tevê, cujas imagens mostram milhares e milhares de acompanhantes do cortejo de Sua Santidade excitou e trouxe esperanças aos moradores. Afinal, a vinda de milhares de pessoas representa novas possibilidades. Elas têm demandas precisam comer, beber e satisfazer outras necessidades. Nos dias que antecedem o grande evento, o vilarejo se transforma. Surgem e se multiplicam pequenos empreendedores: pessoas muito humildes, que com extremo sacrifício, utilizam suas escassas poupanças ou se endividam para adquirir pãezinhos, salsichas, lingüiças, se preparam para produzir tortas, doces, bolos, na esperança de um efêmero, mas importante ganho “extra. O personagem principal do filme tem uma idéia original: se milhares de pessoas vão comer e beber e se não há banheiros públicos na cidade, por que não construir um banheiro para alugá-lo aos devotos? Passa o papa, as esperadas multidões não acorrem nem acompanham seu cortejo e ficam a desilusão e os prejuízos. Milhares e milhares de doces, pastéis, tortas, bolos ficam nas tendas e tabuleiros expostos ao sol, inúteis, anunciando um futuro de maiores privações. O banheiro do papa fica entregue “às moscas”. O “grande evento mágico” deixa apenas um rastro de desolação, de frustradas esperanças. Pergunto: não será a Copa de 2014 o nosso “banheiro do papa”?

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