Alguns meses atrás, escrevi um artigo sobre Pedro Simon, uma breve retrospectiva crítica de sua longa trajetória política. Simon acabara de se aposentar.
Eu era àquela época colunista de um jornal digital local e a editora vetou a veiculação, alegando que as críticas eram muito ásperas, duras, além de extemporâneas, inoportunas, num momento em que o personagem, quase nonagenário, se retirava da cena pública. Discordei, como continuo discordando: um político que teve, por várias décadas, um papel de liderança na política local e projeção nacional, como Pedro Simon, deve ter sua vida política analisada, esmiuçada, pode e deve passar pelo crivo da análise histórica.
O mesmo ocorre com outra figura de expressão ainda maior na política nacional, que também recentemente se retirou da vida pública: Fernando Henrique Cardoso, o FHC.
Neste mês de junho ele completará 91 anos, de uma vida que, sem dúvidas, terá um final melancólico. FHC dividiu com Luiz Inácio Lula da Silva o papel de protagonista central da vida política brasileira nas últimas três décadas.
Vindo do exílio em 1978, Fernando Henrique iniciou uma carreira política de mais de quatro décadas: suplente de senador por São Paulo (1983), senador (1988), ministro da Fazenda de Itamar Franco (1993) e presidente da República (1995/2002). Político que no início de sua trajetória era dito de esquerda, nas últimas duas décadas foi se deslocando para a direita. Renegou suas teses acadêmicas, se deixou levar pelos dominantes ventos do neoliberalismo que passaram a soprar forte a partir dos anos oitenta. Abandonou o sonho de construir uma nação forte e soberana, transformou-se num entreguista, liberal de carteirinha.
Retomou a reforma do estado iniciada por Collor, leia-se, extinção de órgãos e do efetivo de servidores públicos, o “enxugamento”, intensificou o ataque aos direitos trabalhistas, acelerou a desregulamentação do sistema financeiro, entenda-se liberdade total para o capital financeiro aumentar seus lucros e consolidar sua hegemonia. Realizou um gigantesco programa de privatizações, onde pipocaram dezenas de indícios e denúncias de desvios e irregularidades. Complementando as privatizações, tivemos o envio dos frutos do “saque do patrimônio nacional”: a remessa irregular de centenas de bilhões de dólares para paraísos fiscais no exterior através das famosas contas CC-5 criadas por Gustavo Franco no governo FHC. Entreguismo, ilicitudes, fraudes.
Como tudo isso não bastasse, FHC alterou a legislação tributária concedendo isenção fiscal para os cerca de 300 bilhões de reais/ano de dividendos recebidos por acionistas de empresas. Um escândalo.
Ele virou, assim, guru da oligarquia brasileira, herói e “queridinho” da grande mídia. Difícil, impossível explicar como um ex-professor da USP, político profissional que toda vida ocupou cargos públicos, originário de uma família da classe média carioca (seu pai foi general do exército, por sinal um nacionalista) tenha conseguido comprar apartamentos de luxo em Nova York e Paris ser proprietário rural em Minas Gerais e São Paulo.
Em 1988 foi um dos fundadores do PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira. Na sua criação o partido se declarou de centro-esquerda. Grossa mentira. Na verdade, sempre foi um partido de direita que paulatinamente foi se deslocando mais e mais à extrema direita. Defendeu com unhas e dentes uma política econômica neoliberal que concentra cada vez mais e mais a renda, destrói o emprego, corrói os salários.
FHC e seu PSDB apoiaram a farsa que viabilizou o golpe de 2016, votaram a favor de impeachment da Dilma, cuja consequência foi a posse de Temer e a eleição de Bolsonaro. Nada mais lógico: FHC, Temer, Bolsonaro et caterva são vinhos da mesma pipa: defendem o mesmo ideário econômico, hoje entregue às mãos incompetentes de Guedes. Mudaram os personagens, o enredo é o mesmo. Bolsonaro é a uma versão tosca, primária, psicopata, burlesca de FHC, que sempre nos enganou com aquele sorrisinho simpático e enigmático.
Hoje nonagenário, Fernando Henrique saiu de cena. Seu PSDB também, rachou, se dividiu, está morrendo. É um milagre um partido ter subsistido por mais de três décadas liderado por Aécio Neves, José Serra, Álvaro Dias, Tasso Jereissati, dentre muitos outros, igualmente execráveis.
Mesmo sabendo que o PT e Lula constituíram de uma aliança eleitoral de amplo e duvidoso espectro, com a intenção de reduzir os riscos da continuidade do fascismo que destrói o país, confesso que sinto um grande desconforto ao ver Alkmin sentado sorridente ao lado de Lula. Alkmin “companheiro”, quem diria. Mas o pior do ato de pré-lançamento da chapa Lula-Alkmin, ocorrido recentemente em Porto Alegre, foi a fala de Tarso Genro. Ele lembrou e enalteceu a figura de FHC. Equívoco imperdoável, a história merece respeito.