Pensamento crítico sobre Porto Alegre, o Brasil e o Mundo.

Kiss, exemplo de impunidade

Ocorrida em janeiro de 2013 a tragédia da boate Kiss completou em julho deste ano quatro anos e meio. Investigações policiais e do Ministério Público estadual originaram várias ações judiciais nas áreas criminal e cível. Dezenas de processos, milhares e milhares de páginas e o resultado final é nulo.

Nenhuma autoridade pública foi presa. As inúmeras irregularidades que causaram o sinistro – funcionamento sem alvará, laudo do corpo de bombeiros concedido sem que existissem mínimas condições de segurança, imóvel inadequado para a atividade a ser licenciada -, dentre outras omissões e irresponsabilidades do poder público foram varridas para debaixo do tapete.

Restaram apenas quatro réus, dois proprietários da boate e dois integrantes da Gurizada Fandangueira, a banda que se exibia no local. Eles estão livres e ainda não foram levados ao júri popular de primeira instância. Mesmo que sejam condenados nesta instância poderão recorrer respondendo em liberdade. Conclusão: mesmo que tudo dê errado para eles, ficarão em liberdade nos próximos anos.

Fica uma pergunta: como explicar este absurdo? Acho que é a confluência de vários fatores e causas que revelam a total fragilidade de nossas instituições.

Primeiro são os intermináveis meandros da legislação penal e cível brasileira que permitem infindáveis recursos protelatórios. Bismark afirmou, com razão, que os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis. Aqui no Brasil, com este Congresso que aí está é um pouco pior. Troca de votos por emendas com recursos é prática rotineira, o velho “toma lá, dá cá”. O mais recente escândalo é a votação, a toque de caixa, de emenda para aumentar o fundo partidário de 3 para 6 bilhões de reais.

Não há nenhuma dúvida que as autoridades públicas – Polícia, Ministério Público estadual e Judiciário – foram extremamente indulgentes, “camaradas” com os responsáveis.

Para começar, os bombeiros foram julgados por um tribunal militar. Ora, não é possível conceber e aceitar a existência de duas justiças, uma para civis e outra para militares, especialmente sabendo como é forte o “espírito de corpo” da turma da farda. É inconcebível, também, que um grande estabelecimento de diversão noturna, frequentado por centenas de jovens, funcionasse sem alvará ou que o alvará tivesse sido concedido sem que existissem as mínimas condições de segurança: número adequado de saídas de emergência e uso de materiais e equipamentos de prevenção de incêndios. É óbvio que houve omissão do Corpo de Bombeiros e das áreas de fiscalização, de emissão de alvarás e do setor de vistoria predial da secretaria de obras da Prefeitura.

É inexplicável que nenhum agente público – servidor de carreira ou detentor de cargo político – tenha sido severamente punido ou preso. Fica absolutamente clara a influência do poder político local sobre os responsáveis pela apuração dos fatos e punição dos responsáveis. O prefeito Schirmer não sofreu nenhuma sanção criminal ou ameaça de perda de mandato, muito pelo contrário: três anos depois foi nomeado secretário estadual de segurança. Difícil explicar como um administrador que falhou, não garantindo a segurança de um estabelecimento licenciado pela Prefeitura, tenha sido nomeado para cuidar da segurança de um Estado.

Os pais que perderam ou tiveram filhos feridos protestaram, com toda razão A resposta foi inimaginável: foram processados por calúnia e difamação por três promotores estaduais. Uma promotora chegou a dizer que a tragédia não teria a dimensão que teve se os frequentadores não estivessem bêbados, abusado do consumo de bebidas alcoólicas! Temos aí o absurdo dos absurdos: os responsáveis pela tragédia não foram punidos, se atribuiu parte da culpa às próprias vítimas e os seus pais e responsáveis viraram réus!

Descontentes com a lentidão da tramitação dos processos e certamente desconfiados da parcialidade de promotores e juízes, os pais tentam uma nova cartada: pedem a transferência do processo para a alçada federal. A Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal receberam a demanda e estudam a possibilidade de atendê-la.

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on telegram
Share on whatsapp
Share on email

Deixe seu comentário

Textos relacionados

07/06/2022

Alguns meses atrás, escrevi um artigo sobre Pedro Simon, uma breve retrospectiva crítica de sua longa trajetória política. Simon acabara de se aposentar. Eu